Acolhimento em Portugal da Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Organização das Nações Unidas (ONU), que
passou a existir oficialmente a 24 de
outubro de 1945, foi criada, como se sabe, com o propósito de manter a segurança, o diálogo e a paz, a nível mundial, e
de facilitar a união internacional para a
resolução dos graves problemas
económicos, sociais e humanitários, deixados pela Segunda Grande Guerra. Mas, esta Organização, foi rapidamente
confrontada com algumas clivagens
potenciadas pelo fim da Guerra, que, embora não tenham sido traduzidas em confrontos armados diretos, acabaram por
ditar, através de novas alianças e novas
divisões, uma alteração da geografia
mundial, assente em ideologias e políticas assaz distintas.
Estabeleceram-se duas superpotências fortemente armadas. Por
um lado, o grupo Ocidental, liderado pelos
Estados Unidos da América, baseado numa
ideologia capitalista e na defesa dos direitos individuais, considerados de primeira geração e que traduziriam os
valores da liberdade (os direitos civis e
políticos). Pelo outro lado, um bloco de
Leste, sob a influência da União Soviética, assente em ideais comunistas e na valorização, quase exclusiva, dos
direitos coletivos (no caso, os direitos
económicos, sociais e culturais), chamados de segunda geração, assentes no valor da igualdade.
Estava, assim, instalada a Guerra Fria, uma guerra
diplomática imposta ao mundo, por via
de uma ameaça permanente de destruição nuclear, e que haveria de perdurar até 1989.
É neste contexto internacional divisionista que surge, em
1948 no seio da ONU, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A Organização das Nações Unidas não quis, de forma
declarada, tomar partido nesta querela,
tendo, no texto da Declaração, teoricamente, atribuído igual importância e destaque aos dois grupos de direitos.
Acontece que, o artigo 22.º da Declaração, ao
estabelecer que os direitos económicos,
sociais e culturais serão realizados “ [...] graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia
com a organização e os recursos de cada país”,
deixa claramente espelhada a sua
preferência. De facto, parece que, manifestamente, é tomada uma posição: Os direitos civis e políticos
seriam imediatamente implementados, ao
passo que os direitos económicos, sociais e culturais seriam concretizados de acordo com as disponibilidades financeiras de cada Estado Parte.
A desvalorização destes direitos de igualdade, não agrada aos
países comunistas e não é por acaso que a
Declaração, tendo sido aprovada sem votos
contra, contou com algumas (oito) abstenções sendo, como se compreende, a da União Soviética (URSS) uma delas.
Aqui convém realçar que, mesmo que aos dois grupos de
direitos não tenha sido
dado (e não foi) o mesmo destaque e consideração, o facto de todos eles constarem do mesmo documento, já se
trata de um avanço considerável no
tratamento dos Direitos Humanos. Pois, deste modo, pelo menos teoricamente, a Declaração difunde o
conceito de que o ideal do ser humano
livre só pode ser plenamente realizado se forem criadas as condições que permitam, a cada um, o pleno gozo dos seus
direitos, tanto civis e políticos como
económicos sociais e culturais. E esta
ideia é de facto inovadora, já que, as Declarações anteriores à DUDH, não entendiam os direitos como fazendo parte de
um núcleo indivisível, interdependente e
inter-relacionado. Na verdade elas destacavam
ora os direitos e liberdades individuais, assumindo uma filosofia liberal, como era o caso das Declarações
Francesa e Americana, ou assumiam uma
postura de prevalência dos direitos sociais,
como aconteceu com a Declaração do Povo Trabalhador da URSS do início do século XX. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos introduziu a conceção de
que os direitos económicos, sociais e culturais
e os direitos civis e políticos se conjugam. Ao misturar as filosofias liberais e sociais realça, desta forma, que
igualdade e liberdade estão mutuamente
ligadas não acontecendo uma sem a outra.
Em Portugal, à época em que foi criada, a Declaração poderia
ter sido sentida, pelo menos pelos opositores confessos
ao regime de Salazar, como um sinal de
esperança, mas tal não aconteceu, tendo sido convenientemente ignorada tanto pela Ditadura como pela “esquerda”
unida, polarizada no MUD (Movimento de
Unidade Democrática) e controlada pelo PCP (Partido Comunista Português).
Quanto ao ditador, que pretendia manter os pensamentos
cativos e para quem a defesa dos
Direitos Humanos era um assunto inexistente, terá sido grande o seu repúdio por um texto que estabelece,
logo no seu artigo 1.º, que “todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade
e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
Com esta expressão da fundamentalidade dos princípios da
liberdade, igualdade e
fraternidade fica muito clara a influência da Revolução Francesa, no conteúdo do documento. Deste modo, seria
natural que Salazar tivesse aproveitado esta proximidade de princípios para achincalhar
a Declaração e os direitos nela contidos.
Mas não o fez. Não o fez, desde logo
porque não quis afrontar os seus parceiros e principais mentores da ONU e da Declaração Universal dos Direitos
Humanos: Os Estados Unidos da América e a
Inglaterra. Na verdade, apesar de, tanto na
Carta das Nações Unidas (artigo 1.º) como no texto da Declaração (artigo 15.º) se proclamar a autodeterminação dos
povos, estes dois países foram, depois
disso, durante largos anos, coniventes passivos com o nosso regime colonialista. Conivência que o governante nacional
queria conservar. Assim, apesar da filosofia
individualista e liberal, que Salazar tão
veementemente gostava de criticar, se encontrar inscrita na Declaração, esta passou pelo regime e pelo seu séquito de
forma discreta e incólume.
Quanto aos antifascistas opositores do regime, seria
expectante que, dentro das suas
possibilidades gráficas e organizativas (muito limitadas pela censura), tivessem dado ao documento um destaque considerável, usando-o para “confrontar” e abalar o
regime com as novas posições
internacionais. Mas, tal, também não ocorreu.
Não podemos esquecer-nos de que, no contexto da Guerra Fria e
por motivos ideológicos, a Declaração não
agradou inteiramente à URSS, que, por
isso, não a aprovou (absteve-se, já o referi). Por outro lado, como sabemos,
é comum ouvir-se dizer que, em Portugal, durante a ditadura, a maneira de ser oposição era ser comunista. E, de
facto, era mais ou menos assim. Ora, se o
país que representava o Bloco Comunista não se comprometeu com a DUDH, os seus seguidores também não o fariam.
Concluindo, o acolhimento em Portugal da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, na altura em que foi
proclamada, oscilou entre a “tolerância”
internacionalmente comprometida da ditadura e um “entusiasmo” discreto e apagado da oposição.
Comentários
Enviar um comentário