As Eleições Europeias, os Direitos Humanos e o “Tempo das Cerejas”
Os direitos humanos nascem incrustados na dignidade
humana e pertencem a qualquer pessoa
pelo simples facto de o ser. Esta visão atual começou a desenhar-se com o jusnaturalismo do século XVII, corrente
jurídica e filosófica baseada na convicção da
existência de direitos inatos a todos os
seres humanos.
Ao considerar o homem como ser possuidor de direitos naturais inerentes à sua
categoria, este jusnaturalismo rompe
definitivamente com a teocracia e prepara as bases ideológicas para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, assinada em França, a 26 de agosto de 1789,
com repercussões muito para além deste
território, onde, no fim das contas, se afirmam e confirmam, formalmente, direitos pré-existentes e inquestionáveis.
Logo no artigo 1.º deste documento fica claro o carácter
natural, inalienável e universalista dos direitos
ao afirmar-se que todos os homens, e não
apenas os franceses, nascem livres e iguais e assim devem permanecer. Nesta altura, porém, uns ainda eram
mais iguais do que outros. Desde logo, o
termo “Homem”, impresso no título da Declaração,
é usado no sentido literal e não numa aceção de humanidade, pelo que, logo à partida, ficavam excluídas do direito à
igualdade todas as mulheres. Além disso, nem
todos os homens estavam abrangidos por
aquele documento, descartando-se, além das mulheres, outros grupos considerados igualmente “particulares”.
Os direitos, ali gravados, são os direitos de liberdade
(direitos civis e políticos)
ou os direitos do indivíduo em relação ao Estado. Precisamente por terem sido os primeiros a ganharem
visibilidade, costumam ser apelidados de
direitos de primeira geração. E, porque pressupõem
uma ideia de que, para a sua concretização, se bastariam com uma atitude abstencionista da parte do Estado, são
também chamados direitos negativos.
Pretende-se, com este catálogo de direitos, afastar o Estado das relações sociais, pessoais e económicas da comunidade, potenciando, assim, a instalação do
liberalismo, onde a principal função do
poder político era limitada à
fiscalização da ordem pública.
Com o desenrolar desta nova forma de governo, e da Revolução
Industrial, generaliza-se um
ambiente de exploração e desamparo para certas camadas da população assalariada, submetidas a horários de trabalho
excessivos e esgotantes, em condições físicas
insalubres, recebendo como contrapartida uma
remuneração indigente. O Estado liberal absteve-se
de defender os direitos dos mais desfavorecidos e de limitar o poderio da burguesia industrial, pujante e
faustosa, tendo sido conivente com o
rasto de pauperismo que essa classe, aproveitadora
da falta de intervenção estatal, ia deixando no seu caminho.
Para as vítimas deste sistema económico, a defesa dos
direitos individuais passou a ser absolutamente
secundária. Por que eles agora clamavam
era por um Estado que fosse capaz de proteger os seus direitos a um nível de vida decente. É neste contexto
que surgem várias revoltas populares na Europa,
das quais se destaca, em 1871, a Comuna
de Paris, um movimento revolucionário composto por trabalhadores fabris, elementos da pequena burguesia,
escritores e artistas que, após lutas
relevantes, conseguiu “formar governo”, entre 26 de março e 28 de maio daquele ano.
Durante esse período, fugaz, foram criadas reformas consideráveis em prol dos mais
desfavorecidos, mas, ao fim de 32 dias, o governo popular terminou da
pior forma, com a execução sumária de milhares dos seus apoiantes.
A rebelião (e as suas reformas) foi abatida, no entanto, pela
esperança na renovação que suscitou e pela conquista,
ainda que breve, de direitos, ficará para sempre associada à Primavera e à natureza em festa que “o tempo das cerejas”
simboliza.
Além disso, apesar de aniquilada, a Comuna de Paris não deixa
de ser um dos movimentos que, na esfera
internacional, está na génese da passagem,
que veio a ocorrer, do Estado Liberal para o Estado Social, onde, num cenário de escassez generalizada, emergem os
direitos humanos de segunda geração, visando
assegurar o direito à saúde, o direito à educação,
os direitos dos trabalhadores, o lazer, a qualidade de vida, etc. Estes direitos são também chamados direitos positivos,
pois, assentam na ideia de que, para a
sua concretização, necessitam do contributo
ativo do Estado, que deverá investir na implementação de políticas públicas, que permitam que os direitos
económicos, sociais e culturais sejam
garantidos, de modo a que a dignidade de cada pessoa seja protegida.
A partir do final da Segunda Grande Guerra (1945), perante as atrocidades cometidas, a violação dos direitos humanos
deixou de ser entendida como questão
interna de cada Estado, e projetou-se para um âmbito mais alargado, tornando-se, portanto, imperiosa a necessidade da
fundação de uma nova ordem internacional
e da adoção de medidas eficazes para o amparo
efetivo desses direitos. A constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), encetou esse processo.
No seio desta organização, é criada, em 1948, a Declaração
Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), que marca o avanço dos direitos do cidadão, constantes na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, para os direitos de
todos os seres humanos, independentemente do local onde possam encontrar-se. A DUDH é o primeiro
documento internacional a incluir no seu corpo
tanto os direitos de primeira como os de segunda
geração, dando, deste modo, o mote para a consideração da indivisibilidade e interdependência de todos os
direitos humanos.
Mas, andamos para trás logo a seguir, quando, também no
âmbito da ONU, se separaram os
direitos civis e políticos (ou de primeira geração), e os direitos económicos sociais e culturais (ou de segunda
geração), por dois instrumentos
vinculativos, o PIDCP e o PIDESC, ao invés de, como se pretendia inicialmente, se agruparem todos os direitos
no mesmo Pacto.
Andamos igualmente para trás quando, a nível europeu, a
Convenção Europeia dos
Direitos do Homem (de 1950, com entrada em vigor em 1953), o documento mais importante do Conselho da
Europa, reitera, da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, apenas os direitos civis e políticos, deixando de lado os direitos económicos, sociais e culturais.
A justificação histórica para tal divisão e supressão
encontra-se na Guerra-Fria, com o
Ocidente (defensor da valorização dos direitos de primeira geração) a pretender vincar a diferença
ideológica que o separava do Leste (que destacava,
sobretudo, os direitos de segunda geração).
Em 1993, a Declaração e Programa de Ação de Viena, no seu
parágrafo 5.º, vem confirmar
a ideia de que todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados, e,
por isso, devem merecer a mesma ênfase e
consideração. Neste contexto, o caminho a
seguir deverá ser o da defesa integral de todos os direitos humanos (não só os
de primeira e segunda geração, mas também os
direitos de terceira geração - direitos
coletivos ou difusos –, despontados, no Estado Pós-Social, com o escopo de
proteger o género humano no seu todo,
como é o caso do direito à paz e do direito a um meio ambiente saudável) para
todos os humanos.
Mas a verdade é que, em qualquer altura, podem surgir “bons argumentos” capazes de forçar o retrocesso dos
direitos conquistados, e é precisamente
contra essas situações que convém manter o alerta, impedindo que, “o tempo das cerejas”, nos
escape das mãos.
A União Europeia tem um papel importante na defesa dos
direitos humanos e na criação de sociedades mais
justas, igualitárias, coesas e interculturais.
Em maio, no tempo das cerejas, há eleições europeias.
--
Publicado no jornal Acção Socialista digital: http://accaosocialista.pt/?edicao=989#/989/as-eleicoes-europeias-os-direitos-humanos-e-o-tempo-das-cerejas
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